UNIVERSIDADE
ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM
GEOGRAFIA E DESENVOLVIMENTO LOCAL
DISCIPLINA: Políticas
Públicas e Desenvolvimento Local
PROF. RENATO LEONE MIRANDA
LÉDA
As Políticas Públicas segundo Pierre Müller[1].
Definições Básicas, Idéias Centrais.
1)
termo políticas públicas tem origem inglesa
(public policy) e designa genericamente as ações empreendidas pelo Estado. Não
constitui uma disciplina acadêmica autônoma mas um campo de investigação
pluridisciplinar e, principalmente, um conjunto de ações práticas através das
quais se efetiva a intervenção do Estado na vida da sociedade.
2)
Coloca-se imediatamente uma questão de
diferentes tradições teóricas que mudam o enfoque das PP:
a)
tradição anglo-saxônica, baseada no conceito de governo,
que coloca a questão pragmática de saber quais as condições que favorecem a
formulação de boas e eficazes políticas para o atendimento dos interesses
comuns das coletividade.
b)
tradição filosófica e sociológica baseada no conceito de Estado como uma instituição que, de uma
forma ou de outra, domina a sociedade, dá-lhe forma e a transcende
3)
O interesses pelas PP hoje provoca a necessidade de aproximação dos
dois enfoques gerais e gera uma questão em que a transformação dos modos de ação do
Estado mudou no decorrer dos últimos 50 anos modificou seu espaço e seu papel
dentro das sociedades industriais ocidentais? que poderia ser adaptada
para o caso dos países periféricos em termos de avaliar as condições que
permitem a reestruturação do Estado como um ente responsável pela provisão das
necessidades sociais e o desenvolvimento no contexto marcado, por um lado, pela
evolução e aprofundamento das “intervenções públicas em todos os campos da vida
cotidiana” no marco de um Estado desenvolvimentista e regulador das relações
sociais e, por outro, pela emergência das crises de financiamento do Estado,
pelas novas exigências do dinamismo econômico mundial e pela multiplicação das
demandas sociais... situações novas que alimentaram as teorias e ações
políticas neoliberais.
4)
De forma geral as PP são a expressão da vida
social moderna cada vez mas regulada/regulamentada, fenômeno essencial do séc.
XX, como instrumento de defesa contra:
a)
a constante ameaça de desagregação social em
função do acirramento dos conflitos
b)
flutuações e crises econômicas (que se tornaram
mais profundas e abrangentes na medida que o caráter de interdependência entre
setores, territórios, sociedades e indivíduos é cada vez mais forte pois que a
sociedade moderna e suas lógicas se capilarizaram por quase todos os recantos
da vida do planeta...)
Reprersentações Teóricas das Ações Públicas
1)
Ascenção
da Burocracia como aspecto característico e contraditório da modernidade
a)
tensão entre liberalismo e estatismo
b)
Burocracia Estatal: racionalização da sociedade
(Hegel) x instrumento hipertrofiado
da dominação de classe (Marx)
c)
A burocratização (fortalecimento da Instituição
Estado) é um fenômeno derivado da evolução da sociedade capitalista e, ao mesmo
tempo, uma condição necessária para essa evolução, um conjunto de técnicas e
práticas organizacionais que instrumentaliza a ação do estado para gerenciar e
equacionar conflitos sociais que convergem para a arena política em cujo centro
está o Estado
“a burocratização é um fenômeno essencial para compreender as sociedades modernas. (...) Em razão de sua eficácia, as formas de organização da economia capitalista e da administração moderna do Estado se impõe igualmente nos outros sistemas de ação, ao ponto das sociedades modernas oferecerem mesmo a profana imagem de uma ‘sociedade de organização’ ”.
“a burocratização é um fenômeno essencial para compreender as sociedades modernas. (...) Em razão de sua eficácia, as formas de organização da economia capitalista e da administração moderna do Estado se impõe igualmente nos outros sistemas de ação, ao ponto das sociedades modernas oferecerem mesmo a profana imagem de uma ‘sociedade de organização’ ”.
d)
Caráter técnico e impessoal da administração
burocrática regida por leis e normas garante, em tese, a eficiência das ações
públicas (aplicação racional das decisões governamentais) independente de
vontades e paixões
e)
Mas o esforço racionalizador e formalizador da
lógica burocrática corre o risco de gerar o extremo oposto de sua pretendida
eficicácia... alimentando-se a si mesmo como um fim em si mesmo como uma
organização auto-centrada.
2)
Teoria das Organizações: a dimenção estratégica ®
diante da tendência racionalizadora moderna, empresas e orgãos públicos
estruturam-se como sistemas organizados:
a) que ganham vida própria e
constituem-se como atores sociais cuja ação deve ser estudada e que estabelecem
relações com o meio ambiente (sociedade). Têm suas próprias regras de
funcionamento que se pautam em:
b) conceito de poder. Designa a capacidade dos agentes em utilizar os trunfos dos quais eles
dispõe (peritos, informações, domínios da interface entre a organização e seu
meio ambiente) a fim de maximizar seus recursos e reforçar seu lugar na
organização.
c) O conceito de estratégia. A ação dos homens na organização não é fundada
sobre critérios simples (interesses, amor, ódio etc.) mas sobre uma utilização
mais ou menos hábil das regras formais e informais da organização. Esta
mobilização de recursos da qual se pode dispor um ator se organiza em torno de
uma estratégia orientada para a realização de objetivos que são fixados.
As
relações políticas contemporâneas e a importância das políticas públicas na
gestão do desenvolvimento fundamentam-se no fato de que numa sociedade complexa
os grupos de interesses carecem de intrumentos de ação organizada para alcaçar
os objetivos pretendidos num contexto de disputas de espaço e de fortalecimento
de representação perante ou dentro do Estado.
Esta
lógica das organizações esta presente também na propria gestão dos lugares, e
das cidades em especial, que também constituem um tipo especial de organização,
certamente mais complexa e distinta em sua estrutura e dinâmica, justamente
porque formada pela interseção e intercruzamento de muitas outras organizações
de natureza pública, privada, comunitária, além de formas híbridas que ganham
aos poucos seu espaço. Essa rede organizacional faz da cidade um campo de
fluxos por onde circulam bens, valores, informações, idéias, paixões e
interesses que vão moldando sua paisagem e o modo de vida de seus habitantes.
Hoje
em dia torna-se evidente que o papel de gestão de uma cidade não pode ser mais
exclusivo do poder público, embora continue sendo o agente principal do
processo, cabendo aos setores organizados da sociedade um papel ativo e cada
vez mais proeminente. No tumultuado período de transição em que vivemos, uma
sociedade pós-industrial se impõe sem termos ainda superado problemas do mundo
pré-industrial. Isso significa, por exemplo, que velhas práticas clientelistas
convivem e se chocam com novas formas de articulação entre economia, sociedade
e política nas quais a descentralização e os modelos de gestão participativa
ganham destaque na busca do desenvolvimento local e da melhoria da qualidade de
vida.
Com os pés no presente, mas com os olhos no futuro,
pode-se afirmar que um dos principais dilemas a serem enfrentados em termos de
escolhas políticas é o de estabelecer prioridades ou encontrar formas de
simbiose entre os processos que visam estimular a competitividade e as ações de
reforço dos vínculos de solidariedade, o que torna cruciais o debate público
das questões e a organização de todas os setores da sociedade visando
interferir, com legitimidade, nos processos de planejamento e tomada de
decisões.
3 A gestão
pública - pensar a complexidade do mundo
A gestão pública
é “um conjunto de métodos racionais a serviço dos governantes públicos”. Isto
é, colocar em ação métodos modernos de gestão no setor público. A modernização
da gestão pública recorre atualmente à utilização de ferramentas/artefatos ou
procedimentos administrativos típicos da empresa privada (como a gestão por
objetivos)... o que coloca a questão da especificidade das organizações
públicas em comparação ao setor privado no contexto atual...
a gênese e a evolução da gestão pública, reforçando a imagem
da racionalidade e da modernidade da administração, é sinônimo de uma nova
representação do papel do estado na sociedade.
Nesta evolução,
as três grandes referências da ação pública aqui evocadas: a linguagem
administrativa corresponde ao desabrochamento das formas burocráticas; a linguagem
dos peritos que é contemporânea ao nascimento das grandes organizações; a linguagem
gerencial/empresarial, enfim, designa a administração como lugar de gestão da complexidade do mundo...
diferentes dimensões do Estado não se substituem umas às outras no curso da
história, o que quer dizer que, mesmo se a racionalidade gerencial/empresarial
tende a ser dominante hoje em dia, a lógica jurídica e a lógica do serviço
público continuam a produzir seus efeitos.
O
Embasamento da lógica gerencial/empresarial é a análise de sistemas e as
atuais técnicas de gerenciamento (público e privado) aparecem como utensílios
para construir a atual linguagem da adminstração... a análise do sistema é o modo de
pensamento de uma sociedade complexa; a gestão pública é a linguagem do Estado
em sua ação numa sociedade complexa.
II - Territorialidade e setorialidade
Como
explicar o crescimento dos meios de intervenção dos Estados Ocidentais ? Por
que a industrialização das sociedades ocidentais como o conjunto das mudanças
que ela arrastou, provocou a ação do desenvolvimento de novos meios de
regulação social? O desenvolver das regulações públicas conduz a estatização
das sociedades ocidentais?
1. O declínio das sociedades territoriais. As
sociedades tradicionais como a França do antigo regime, por exemplo, são antes
de tudo sociedades territoriais, ou melhor, agrupamentos
mais ou menos integrados em territórios relativamente autônomos. Neste tipo
de sociedade é o território que confere aos indivíduos sua identidade
fundamental: se é antes de tudo “de algum lugar” (enquanto, hoje em dia, é a
identidade profissional que é estruturante). É também numa comuna referente a
um território que se dá a coerência às comunidades humanas. Cada território
funciona como um sistema relativamente fechado, que encontra nele mesmo as fontes
para sua própria reprodução. Evidentemente não se exagera na autarquia.
Numerosos exemplos mostram que existiam correntes de importantes trocas
econômicas que constituíam uma forma de abertura das coletividades territoriais
e mesmo outros princípios identitários como a religião, por exemplo, vinham
completar a identidade territorial.
Portanto
a impressão de conjunto é de uma prevalência nascida de uma lógica da
territorialidade na organização das relações sociais: fraca divisão do
trabalho, fraca mobilidade. Esse relativo fechamento se prolongou de uma forma
degradante nas campagnes francesas
até o fim do séc. XIX como bem mostra a obra de Eugene Weber intitulada de
maneira significativa O fim dos
territórios.[2]
Do ponto de vista
da regulação social do conjunto - o que aqui nos interessa – esse prevalecer da
lógica da territorialidade tem uma conseqüência fundamental: as sociedades tradicionais estão sempre
ameaçadas de explodir. Com efeito, a partir do momento em que as sociedades
são constituídas de unidades territoriais relativamente autônomas e capazes de
assegurar sua própria reprodução, não existe nenhuma necessidade funcional para
que os diferentes territórios formem um conjunto social coerente. Este traço
característico das sociedades tradicionais foram descritos por Durkheim nos
seus desenvolvimentos sobre a “solidariedade mecânica”[3].
O risco de secessão entre as unidades
territoriais é permanente nesse tipo de sociedade, como mostra a tenacidade dos
reis de França em prevenir as tendências centrífugas dos grandes feudos:
somente a força permite aos grandes impérios manter sua coesão. O princípio
fundamental de uma sociedade tradicional é, portanto, a dialética
centro/periferia. Com a multiplicação das trocas mercantis e a revolução
industrial, esse princípio não desaparece, mas ele é progressivamente
suplantado por uma outra lógica, esta que opõe o global e o setorial: a territorialidade recua diante da
setorialidade.
2. Do território ao setor. Dentre as
inúmeras conseqüências das transformações pelas quais passou o Ocidente entre
os séculos XVIII e XIX, a explosão da divisão
social do trabalho é provavelmente a mais espetacular. Esse movimento
marcou o nascimento das ciências sociais porque as primeiras sociologias, de
Spencer a Durkheim, fizeram – um pouco abusivamente – a grande lei da evolução
das sociedades humanas.
Pode-se
esquematizá-la em três processos fundamentais:
s
Uma “explosão” nas estruturas tradicionais e notadamente na família como lugar de atividade econômica. Doravante
a célula familiar vai se limitar mais e mais à esfera da reprodução e não do
trabalho, logo mais identificada àquela do lazer e do consumo. As atividades de
produção, em contrapartida, vão se desenvolver dentro do universo profissional.
s
Um movimento de corte (separação) das atividades econômicas sob a forma de papéis profissionais mais e mais
numerosos, mais e mais especializados e cujo acesso vai depender mais e mais de
uma formação específica.
s
Enfim, a emergência de novos modelos de reagrupamento desses papéis profissionais,
sob a forma de novas lógicas de reunião da divisão do trabalho, não
mais fundadas sobre o território, que perde sua pertinência, mas por vias
exclusivamente profissionais.
Assiste-se,
então, a passagem de uma lógica horizontal (a dos territórios) a uma lógica
vertical (a dos setores). Se pode dizer também que se passa de uma prevalência
da dialética centro/periferia a uma dominação da lógica global/setorial. Dois
exemplos ilustram essa transformação.
A
primeira é aquela do mundo rural. Numa sociedade tradicional a
agricultura não existe propriamente como uma atividade profissional: o camponês
(quer dizer, aquele que é do campo) trabalha para a assegurar a reprodução de
sua própria família. Existe pouquíssima distinção entre os papéis “profissionais”
e o conjunto dos papéis familiares, de sociabilidade ou de vizinhança: não
existe distinção entre trabalho e não-trabalho.
Com o processo de modernização (na
França, esse processo se desenvolveu tardiamente, o que permitiu ver as coisas
se desenrolarem em velocidade acelerada), o sistema de relações estoura
completamente: a modernização dos métodos de trabalho conduz o camponês a
romper com sua relação com o território; o exercício da agricultura se
transforma em uma profissão que define suas próprias regras d´excellence; enfim, a esfera da
produção se dissocia da esfera da reprodução. Em resumo, vê-se emergir, no seio
do mundo rural, um conjunto de papéis
profissionais cuja definição e articulação não depende mais da relação com um
território, mas que tende a definir suas próprias regras de funcionamento: o
setor agrícola se desata do mundo rural. É precisamente nesse momento que
põe em prática uma política agrícola.
Segundo
exemplo: o setor social. Aqui não se trata de uma noção que se
possa dizer propriamente que possua um sentido numa sociedade territorial.
Nesse tipo de sociedade, o problema dos pobres e dos indigentes se trata localmente por intermédio das campanhas
de caridade ou de assistência. Ora, inúmeros trabalhos mostram que com a
emergência do assalariado e do enfraquecimento das solidariedades locais se vê
desenvolver uma nova forma de solidariedade ou de laço social: é o welfare state que tenta trazer uma
resposta ao fim da ordem territorial oferecendo a cada grupo “não territorial”
um lugar e um proteção mínima dentro da sociedade. É a passagem da assistência,
que sobressaia da ordem territorial, à técnica da seguridade que remete à
setorialidade: as previdências sociais, escreve Didier Renard, “marcam a
transição de uma proteção social organizada sobre uma base territorial em
direção a uma proteção social organizada sobre uma base profissional”[4].
A partir de então, o “social” vai se desenvolver como setor específico e fazer-se objeto de políticas adaptadas.
Em cada caso, o
processo é similar: o setor aparece como uma estruturação vertical de papéis
sociais (em geral profissionais) que definem suas regras de funcionamento, de
seleção das elites, de elaboração de normas e de valores específicos, de
fixação de suas fronteiras, etc. A tradução sociológica da noção de setor é,
bem entendido, a corporação: cada setor constrói uma identidade corporativista própria que
dará a unidade e o sentido ao que no início não passava de uma agregação
abstrata de papéis profissionais. De certa forma, cada setor vai lidar com o
território se colocando com “princípio” da estruturação das relações sociais. O
problema é que falta aos setores um atributo essencial dos territórios: eles
não são auto-reprodutíveis. Mais exatamente, seu grau de auto-reprodução
enquanto sistema social abstrato é muito mais frágil porque eles dependem da
reprodução de outros setores[5].
Conseqüência:
toda sociedade setorial será necessariamente confrontada como um grave problema
de coesão social. Enquanto a sociedade tradicional é ameaçada de explosão, a
sociedade setorial está ameaçada de desintegração, se ela não encontra nela
mesma os meios de gerir os antagonismos intersetoriais. Esses meios são as políticas públicas. Por que esse risco de
desintegração? Porque cada setor, desenvolvendo sua própria lógica de
reprodução erigirá seus objetivos setoriais (aumentar o lucro dos agricultores,
desenvolver o quadro de atendimento médico à população, melhorar o equipamento
do exército...) como fins últimos. Ademais que, contrariamente ao território, um
setor não pode fazer secessão! Não se pode imaginar o setor de saúde ou o de
agricultura se separando da sociedade: produtos da divisão do trabalho, os
diferentes conjuntos setoriais são, ao mesmo tempo, dependentes uns dos outros
e antagonistas na “luta” pela obtenção de recursos socioeconômicos raros. A
passagem de uma lógica territorial para uma lógica setorial acarreta, então,
duas conseqüências maiores.
A)
Uma
transformação dos processos de mediação social -
ao lado das mediações territoriais que subsistem vendo sua importância
diminuir, se multiplicam as mediações de tipo setorial. Essas últimas projetam
à frente da cena social uma nova geração de representantes cuja legitimidade
não está mais fundada sobre a aptidão de representar uma comunidade territorial
mas sobre a representação de um agrupamento profissional.
B) Utilização cada vez mais massiva de
novas ferramentas intelectuais para pensar a regulação das diferentes demandas
setoriais. Trata-se do ajustamento da contabilidade nacional e dos
quadros de trocas intersetoriais. Mais geralmente, todo o sistema de
planificação francesa que se desenvolve após a guerra é uma representação
cênica (mise en scêne) do confronto
dos diferentes setores (parceiros sociais, ministérios): o Plano, na França, é
um grande teatro da setorialidade onde se vê, ao mesmo tempo, “parceiros
sociais” exprimirem suas reivindicações setoriais e os tecnocratas afiarem seus
instrumentos de regulação macroeconômica de uma sociedade de agora em diante
setorializada.
3. O crescimento da historicidade.
Essa passagem da territorialidade à setorialidade se acompanha da emergência de
uma nova visão de mundo valorizando a
ação das sociedades sobre elas mesmas. Doravante, as sociedades industriais
dispõem, graças ao saber científico e ao seu aparelho industrial, de uma
capacidade de modificar seu meio ambiente, sem ligação qualquer com o passado.
Mas o corolário dessa evolução é o que Yves Barel chama de “auto-referência
social”[6]:
de agora em diante, as sociedades industriais devem encontrar em seu seio o
referencial que dará sentido a sua ação.
Esse novo
referencial corresponde ao conceito de historicidade
proposto por Alain Tourraine a fim de pensar sobre esse crescimento da
capacidade de ação das sociedades modernas sobre elas mesmas. As sociedades
tradicionais, ao contrário, se caracterizam por sua frágil historicidade, o que significa que elas são fortemente
dependentes de elementos exteriores a elas mesmas na orientação de sua
reprodução: climas, fenômenos naturais. Do ponto de vista que nos interessa
aqui, esse desenvolvimento das sociedades industriais em controlar seu ambiente
natural e social tem uma conseqüência essencial: ela vem reforçar ainda a
necessidade de colocar em prática procedimentos de regulação política. Com
efeito, esse crescimento da margem de ação sobre o mundo não se pode exercer
“automaticamente”. Pressupõe que sejam colocados em prática procedimentos de
escolha arbitrados entre as diferentes opções possíveis. Na realidade, cada
avanço no domínio da reprodução social vai gerar toda uma série de efeitos mais
ou menos inesperados que devem ser levados em conta.
A intensificação
da setorialidade e o crescimento da historicidade são portanto dois aspectos de
uma mesma transformação fundamental, aquela que leva as sociedades modernas a
modificar sua relação com o mundo através de uma crescente carga de sua própria
reprodução. Hoje, essa evolução é bem lida em três domínios:
à a
manipulação genética, pois as sociedades humanas estão a um passo de poder
mudar o fundamento mesmo de sua existência, o código genético do homem;
à o
meio ambiente, porque pela primeira vez na história as sociedades humanas
têm a capacidade de modificar radicalmente e de maneira irreversível seu
ecossistema.
à As
armas atômicas, porque pela primeira vez na história as sociedades humanas
têm o poder de decidir se destruírem mutuamente.
É o paradoxo da incerteza: enquanto as
sociedades tradicionais, cuja margem de ação sobre o mundo é frágil, são mais
dependentes dos eventos que lhes são exteriores, as sociedades modernas que
controlam infinitamente melhor sua ação sobre o real vêm sua dependência
crescer em relação aos seus próprios instrumentos. A incerteza máxima não é
geralmente produzida, hoje em dia, pelos eventos exteriores, mas pelo “colocar
em ação” dos meios destinados a controlar o meio ambiente: ataques repentinos
de fragilidade do dólar, catástrofes aéreas ou rodoviárias. Isso significa que
inúmeras políticas públicas não terão outro objetivo senão que a gestão dos
desajustamentos produzidos por outras políticas setoriais: a sociedade
setorial, em perpétuo desequilíbrio, gera permanentemente “problemas”,
“disfunções” ou “perversos efeitos” que deverão, cada um a sua vez, ser objeto
de políticas públicas.
Tal é o quadro
geral no qual se desenvolve nosso estudo de políticas públicas. Será possível,
de agora em diante, passar às definições mais precisas.
II – As políticas públicas como
mediações
Veremos
primeiramente o que diz a literatura consagrada à análise das políticas
públicas antes de reenquadrar essa definição na perspectiva aqui escolhida.
1. O que é uma política pública? – Charles
O. Jones insiste sobre a polissemia do termo que é utilizado em contextos muito
diferentes: a “política americana no Extremo-Oriente”, a política de circulação
de uma grande cidade, a política de uma empresa, etc.[7]
Por essa razão,
os autores propõem sempre uma definição mínima de uma política pública que
permita penetrar no sujeito sem se fixar muito nos contornos para poder
avançar. É o caso da definição que dão Yves Mény e Jean-Claude Thenig em sua
obra conjunta que constitui uma boa síntese da abundante literatura
anglo-saxônica: “uma política pública se apresenta sob a forma de um programa
de ação governamental em um setor da sociedade ou em um espaço geográfico”[8].
Essa abordagem está de acordo com a atitude pragmática que é sempre a dos
analistas de políticas. Aliás, numerosos autores identificam aproximadamente
política pública e programa de ação governamental. A vantagem dessas definições
é cercar um objeto de pesquisa relativamente concreto: a política agrícola, a
política urbana ou a política de transportes como conjunto de programas
governamentais nos domínios da agricultura, do urbanismo ou dos transportes.
Mas seu
inconveniente é o de nada dizer sobre a gênese social das políticas públicas.
Isso porque, conforme a perspectiva geral traçada acima, o esforço é o de compreender uma política pública como um processo de mediação social, na
medida que o objeto de cada política pública é se encarregar dos desajustes que
podem intervir entre um setor e outros setores, ou ainda entre um setor e a
sociedade global. Dir-se-á que o objeto de uma política pública é a gestão de
uma relação global/setorial, o que virá abreviado “RGS”.
2. A gestão da relação global-setorial
-
Cada setor se reproduz se transformando e modificando suas relações com os
outros setores.
A RGS é, ao mesmo
tempo, objeto das políticas públicas (o problema que se procura resolver
colocando em prática as políticas) e a variável chave que determinará as
condições de elaboração de uma política. Assim, é em função do lugar do setor automobilístico na sociedade francesa que
será elaborada uma política destinada precisamente a modificar as relações que
o setor automobilístico trava com os outros setores. Próprio de uma
sociedade setorial é gerar permanentemente uma infinidade de defasagens e
desajustes entre os setores, cujos modos de produção entram em colisão
constantemente. Gera a obsessão de “mudança”, de “modernização” ou de
“adaptação”, típica dessas sociedades. Com efeito, de um jeito ou de outro, o
objeto das políticas consiste sempre em frear ou acelerar a transformação do
setor do qual elas se encarregam. Esse feito provoca inevitavelmente outras
defasagens que, é claro, necessitarão, por sua vez, de serem sanadas, e assim
por diante.
3 - Um esquema
da análise das políticas
Existe
política pública logo que uma autoridade pública local ou nacional, tenta, por
meio de um programa de ação coordenada, modificar o meio cultural, social ou
econômico dos atores sociais percebidos em geral numa lógica setorial. A partir
de então, toda política pode se decompor em três processos fundamentais.
a) trata-se em primeiro lugar de uma tentativa (o que
significa, ao mesmo tempo, que existe ação voluntária e que esta nem sempre
obtém resultado esperado) para administrar o lugar, o papel e a função dos
setores concernidos em relação a sociedade global ou em relação a outros
setores.
b) Esta relação global/setorial só pode se transformar em
objeto de investigação pública em função da imagem que fazem os atores
envolvidos. É esta representação da RGS que se chama referencial de uma política
pública que designa o conjunto de imagens ou normas de referência, em
função das quais são definidos os critérios de intervenção do Estado, assim
como os objetivos da política pública considerada.
c) Nessas condições, uma etapa fundamental da pesquisa
consistirá em determinar qual o setor (ou grupo de atores) que se encarrega
desta operação de construção ou de transformação do referencial de uma política
pública. Com efeito, esse ator que se chamará mediador ocupará uma
posição estratégica no conjunto do sistema de decisão examinado. Pode se
resumir esses três caracteres através do seguinte esquema:
A elaboração e implementação de políticas públicas
faz-se através da íntima articulação entre Estado e grupos de interesse que
exercem papel de mediação ao prepresentarem setores diversos da sociedade
perante o Estado, fenômeno designado por Muller (1998) como neocorporativismo. O neocorporativismo define, então, um tipo de articulação entre grupos de
interesse e políticas públicas, próprios a certos países industrializados
[...]
Nesse
contexto, evidencia-se um duplo processo no qual o Estado – e os processos de
elaboração das políticas públicas – exerce um papel importante na gênese e na
definição dos atores sociais[9],
ao mesmo tempo em que esses atores buscam uma representação mais efetiva junto
às intâncias administrativas com maior poder decisório.
Segundo
Muller, o conceito de corporativismo coloca em evidência dois aspectos
fundamentais que manifestam o crescente papel das políticas públicas na
mediação social:
a)
O acesso aos lugares
de elaboração das políticas públicas é um entrave estratégico para os
diferentes grupos de interesse a fim de obter do Estado os recursos
regulamentares, financeiros ou simbólicos. A partir de então, um grupo de
interesse deve ser integrado o mais acima
possível no processo de decisão conduzindo a definição de uma política pública,
esforçando-se em dominar as condições de implementação da política.
b)
O melhor meio de
alcançar esses objetivos é de obter do Estado, de fato ou de direito, um monopólio de representação junto às
instâncias administrativas competentes ao benefício de uma das organizações
envolvidas. A mediação corporativista marca então um tipo de arranjo mútuo
[através] do qual o Estado irá estabilizar
o ambiente social de uma política pública conferindo um eminente papel a um dos
atores presentes (na necessidade, cria esse ator...) o que lhe permite dispor
de um intermediário eficaz dentro do setor. Isso significa que, de mais a mais,
o continuum que une os indivíduos à
sociedade passa pelo exercício de uma política pública.
A primeira vista, pode parecer exagerada a idéia de
que o Estado “cria” os atores com os quais dialoga no processo de elaboração de
políticas públicas. Mas as estratégias adotadas em diversos setores,
particularmente no campo do turismo, convergem para essa perspectiva...
A notória preocupação das políticas de turismo do
Estado da Bahia em integrar os empresários do setor de forma a constituir um
ambiente político mais propício para fazer fluir as decisões de investimento e
melhorar o desempenho do setor evidencia-se na criação recente do cluster do entretenimento... entendido
como "um grupamento de empresas líderes que comercializam produtos e/ou
serviços competitivos em mercados estratégicos", por iniciativa do governo
estadual.
Disposto a
consolidar a Bahia como o destino mais visitado do país, o Governo desse Estado
vem promovendo uma grande reestruturação no setor turístico. Para essa
reestruturação, a parceria e a integração com a iniciativa privada são
fundamentais. Sendo assim, o Governo do Estado definiu uma nova estratégia para
o século XXI: a criação de um "Cluster de Entretenimento" [...]. Esse
"Cluster" inclui os setores de turismo, cultura, lazer, esportes,
música, gastronomia e outros que se relacionam à atividade turística.
O
sucesso do projeto do Cluster de Entretenimento pressupõe algumas modificações
no modelo atualmente vigente:
•
lideranças empresariais comprometidas com o futuro;
•
visão compartilhada do negócio entre os empresários;
• reposicionamento estratégico, implicando na melhoria do
produto e na segmentação do mercado consumidor;
•
geração de um ambiente de confiabilidade e previsibilidade entre o governo e o
empresariado;
•
integração entre o governo e o empresariado.
Nessa
estratégia, cabe ao Governo o papel de facilitador, indutor e incentivador do
desenvolvimento econômico e social, através de ações continuadas e
progressivas, que visem:
•
manter um ambiente estável e previsível;
•
melhorar a disponibilidade, a qualidade e a eficiência dos insumos, da
infra-estrutura e das instituições;
•
definir regras e incentivar a competição;
•
estimular e facilitar o desenvolvimento dos membros do Cluster.
[1]
MULLER, P. As políticas públicas. 3ª
ed. corrigida. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.
[2]
E. Weber, Les fin des territoirs.
Paris, Fayard, 1983.
[3]
E. Durkheim. De la division du travail
social. Paris, PUF, 1967.
[4]
D. Renard, Une definition institutionelle du lien social. Revue françoise de science politique, vol. 38, n° 3, juin, 1988, p.
381.
[5]
Y. Barel, La reproduction soliale. Paris,
Anthropos, 1973.
[6]
Cf. L. Nizard, Rapport introductif au colloque Planification et Société, Grenoble, PUG, 1974.. Cf. igualmente as
duas obras publicadas pleo Institut d´histoire du temp présent: H Rousso (dir.)
De Monnet à massé, Paris, CNRS, 1986,
e La planification em crise, Paris,
CNRS, 1987.
[7]
Cf. Jones, An introduction to the study
of public policy. Belmont, Duxbury Press, 1970.
[8]
Y. Mény, J.-C. Thenig, Politiques
publiques. Paris, PUF, 1989, p. 130.
[9]
Cf. B. Jobert et P. Muller, L’Etat em
action, op. cit., p. 45.
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