terça-feira, 28 de maio de 2013

POLITICAS PÚBLICAS - ESQUEMA ELABORADO PELO PROFESSOR RENATO LEDA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM GEOGRAFIA E DESENVOLVIMENTO LOCAL
DISCIPLINA: Políticas Públicas e Desenvolvimento Local
PROF. RENATO LEONE MIRANDA LÉDA

As Políticas Públicas segundo Pierre Müller[1].

Definições Básicas, Idéias Centrais.

1)    termo políticas públicas tem origem inglesa (public policy) e designa genericamente as ações empreendidas pelo Estado. Não constitui uma disciplina acadêmica autônoma mas um campo de investigação pluridisciplinar e, principalmente, um conjunto de ações práticas através das quais se efetiva a intervenção do Estado na vida da sociedade.
2)    Coloca-se imediatamente uma questão de diferentes tradições teóricas que mudam o enfoque das PP:
a)    tradição anglo-saxônica, baseada no conceito de governo, que coloca a questão pragmática de saber quais as condições que favorecem a formulação de boas e eficazes políticas para o atendimento dos interesses comuns das coletividade.
b)    tradição filosófica e sociológica baseada no conceito de Estado como uma instituição que, de uma forma ou de outra, domina a sociedade, dá-lhe forma e a transcende
3)    O interesses pelas PP hoje provoca a necessidade de aproximação dos dois enfoques gerais e gera uma questão em que a transformação dos modos de ação do Estado mudou no decorrer dos últimos 50 anos modificou seu espaço e seu papel dentro das sociedades industriais ocidentais? que poderia ser adaptada para o caso dos países periféricos em termos de avaliar as condições que permitem a reestruturação do Estado como um ente responsável pela provisão das necessidades sociais e o desenvolvimento no contexto marcado, por um lado, pela evolução e aprofundamento das “intervenções públicas em todos os campos da vida cotidiana” no marco de um Estado desenvolvimentista e regulador das relações sociais e, por outro, pela emergência das crises de financiamento do Estado, pelas novas exigências do dinamismo econômico mundial e pela multiplicação das demandas sociais... situações novas que alimentaram as teorias e ações políticas neoliberais.
4)    De forma geral as PP são a expressão da vida social moderna cada vez mas regulada/regulamentada, fenômeno essencial do séc. XX, como instrumento de defesa contra:
a)    a constante ameaça de desagregação social em função do acirramento dos conflitos
b)    flutuações e crises econômicas (que se tornaram mais profundas e abrangentes na medida que o caráter de interdependência entre setores, territórios, sociedades e indivíduos é cada vez mais forte pois que a sociedade moderna e suas lógicas se capilarizaram por quase todos os recantos da vida do planeta...)
Reprersentações Teóricas das Ações Públicas

1)   Ascenção da Burocracia como aspecto característico e contraditório da modernidade
a)    tensão entre liberalismo e estatismo
b)    Burocracia Estatal: racionalização da sociedade (Hegel) x instrumento hipertrofiado da dominação de classe (Marx)
c)    A burocratização (fortalecimento da Instituição Estado) é um fenômeno derivado da evolução da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, uma condição necessária para essa evolução, um conjunto de técnicas e práticas organizacionais que instrumentaliza a ação do estado para gerenciar e equacionar conflitos sociais que convergem para a arena política em cujo centro está o Estado
“a burocratização é um fenômeno essencial para compreender as sociedades modernas. (...) Em razão de sua eficácia, as formas de organização da economia capitalista e da administração moderna do Estado se impõe igualmente nos outros sistemas de ação, ao ponto das sociedades modernas oferecerem mesmo a profana imagem de uma ‘sociedade de organização’ ”.
d)    Caráter técnico e impessoal da administração burocrática regida por leis e normas garante, em tese, a eficiência das ações públicas (aplicação racional das decisões governamentais) independente de vontades e paixões
e)    Mas o esforço racionalizador e formalizador da lógica burocrática corre o risco de gerar o extremo oposto de sua pretendida eficicácia... alimentando-se a si mesmo como um fim em si mesmo como uma organização auto-centrada.
2)    Teoria das Organizações: a dimenção estratégica ® diante da tendência racionalizadora moderna, empresas e orgãos públicos estruturam-se como sistemas organizados:
a)    que ganham vida própria e constituem-se como atores sociais cuja ação deve ser estudada e que estabelecem relações com o meio ambiente (sociedade). Têm suas próprias regras de funcionamento que se pautam em:
b)   conceito de poder. Designa a capacidade dos agentes em utilizar os trunfos dos quais eles dispõe (peritos, informações, domínios da interface entre a organização e seu meio ambiente) a fim de maximizar seus recursos e reforçar seu lugar na organização.
c)    O conceito de estratégia. A ação dos homens na organização não é fundada sobre critérios simples (interesses, amor, ódio etc.) mas sobre uma utilização mais ou menos hábil das regras formais e informais da organização. Esta mobilização de recursos da qual se pode dispor um ator se organiza em torno de uma estratégia orientada para a realização de objetivos que são fixados.

As relações políticas contemporâneas e a importância das políticas públicas na gestão do desenvolvimento fundamentam-se no fato de que numa sociedade complexa os grupos de interesses carecem de intrumentos de ação organizada para alcaçar os objetivos pretendidos num contexto de disputas de espaço e de fortalecimento de representação perante ou dentro do Estado.
Esta lógica das organizações esta presente também na propria gestão dos lugares, e das cidades em especial, que também constituem um tipo especial de organização, certamente mais complexa e distinta em sua estrutura e dinâmica, justamente porque formada pela interseção e intercruzamento de muitas outras organizações de natureza pública, privada, comunitária, além de formas híbridas que ganham aos poucos seu espaço. Essa rede organizacional faz da cidade um campo de fluxos por onde circulam bens, valores, informações, idéias, paixões e interesses que vão moldando sua paisagem e o modo de vida de seus habitantes.
Hoje em dia torna-se evidente que o papel de gestão de uma cidade não pode ser mais exclusivo do poder público, embora continue sendo o agente principal do processo, cabendo aos setores organizados da sociedade um papel ativo e cada vez mais proeminente. No tumultuado período de transição em que vivemos, uma sociedade pós-industrial se impõe sem termos ainda superado problemas do mundo pré-industrial. Isso significa, por exemplo, que velhas práticas clientelistas convivem e se chocam com novas formas de articulação entre economia, sociedade e política nas quais a descentralização e os modelos de gestão participativa ganham destaque na busca do desenvolvimento local e da melhoria da qualidade de vida.
Com os pés no presente, mas com os olhos no futuro, pode-se afirmar que um dos principais dilemas a serem enfrentados em termos de escolhas políticas é o de estabelecer prioridades ou encontrar formas de simbiose entre os processos que visam estimular a competitividade e as ações de reforço dos vínculos de solidariedade, o que torna cruciais o debate público das questões e a organização de todas os setores da sociedade visando interferir, com legitimidade, nos processos de planejamento e tomada de decisões.

3 A gestão pública - pensar a complexidade do mundo

A gestão pública é “um conjunto de métodos racionais a serviço dos governantes públicos”. Isto é, colocar em ação métodos modernos de gestão no setor público. A modernização da gestão pública recorre atualmente à utilização de ferramentas/artefatos ou procedimentos administrativos típicos da empresa privada (como a gestão por objetivos)... o que coloca a questão da especificidade das organizações públicas em comparação ao setor privado no contexto atual...
a gênese e a evolução da gestão pública, reforçando a imagem da racionalidade e da modernidade da administração, é sinônimo de uma nova representação do papel do estado na sociedade.
Nesta evolução, as três grandes referências da ação pública aqui evocadas: a linguagem administrativa corresponde ao desabrochamento das formas burocráticas; a linguagem dos peritos que é contemporânea ao nascimento das grandes organizações; a linguagem gerencial/empresarial, enfim, designa a administração como lugar de gestão da complexidade do mundo... diferentes dimensões do Estado não se substituem umas às outras no curso da história, o que quer dizer que, mesmo se a racionalidade gerencial/empresarial tende a ser dominante hoje em dia, a lógica jurídica e a lógica do serviço público continuam a produzir seus efeitos.
O Embasamento da lógica gerencial/empresarial é a análise de sistemas e as atuais técnicas de gerenciamento (público e privado) aparecem como utensílios para construir a atual linguagem da adminstração... a análise do sistema é o modo de pensamento de uma sociedade complexa; a gestão pública é a linguagem do Estado em sua ação numa sociedade complexa.

II - Territorialidade e setorialidade


Como explicar o crescimento dos meios de intervenção dos Estados Ocidentais ? Por que a industrialização das sociedades ocidentais como o conjunto das mudanças que ela arrastou, provocou a ação do desenvolvimento de novos meios de regulação social? O desenvolver das regulações públicas conduz a estatização das sociedades ocidentais?

1. O declínio das sociedades territoriais. As sociedades tradicionais como a França do antigo regime, por exemplo, são antes de tudo sociedades territoriais, ou melhor, agrupamentos mais ou menos integrados em territórios relativamente autônomos. Neste tipo de sociedade é o território que confere aos indivíduos sua identidade fundamental: se é antes de tudo “de algum lugar” (enquanto, hoje em dia, é a identidade profissional que é estruturante). É também numa comuna referente a um território que se dá a coerência às comunidades humanas. Cada território funciona como um sistema relativamente fechado, que encontra nele mesmo as fontes para sua própria reprodução. Evidentemente não se exagera na autarquia. Numerosos exemplos mostram que existiam correntes de importantes trocas econômicas que constituíam uma forma de abertura das coletividades territoriais e mesmo outros princípios identitários como a religião, por exemplo, vinham completar a identidade territorial.
Portanto a impressão de conjunto é de uma prevalência nascida de uma lógica da territorialidade na organização das relações sociais: fraca divisão do trabalho, fraca mobilidade. Esse relativo fechamento se prolongou de uma forma degradante nas campagnes francesas até o fim do séc. XIX como bem mostra a obra de Eugene Weber intitulada de maneira significativa O fim dos territórios.[2]
Do ponto de vista da regulação social do conjunto - o que aqui nos interessa – esse prevalecer da lógica da territorialidade tem uma conseqüência fundamental: as sociedades tradicionais estão sempre ameaçadas de explodir. Com efeito, a partir do momento em que as sociedades são constituídas de unidades territoriais relativamente autônomas e capazes de assegurar sua própria reprodução, não existe nenhuma necessidade funcional para que os diferentes territórios formem um conjunto social coerente. Este traço característico das sociedades tradicionais foram descritos por Durkheim nos seus desenvolvimentos sobre a “solidariedade mecânica”[3]. O risco de secessão entre as unidades territoriais é permanente nesse tipo de sociedade, como mostra a tenacidade dos reis de França em prevenir as tendências centrífugas dos grandes feudos: somente a força permite aos grandes impérios manter sua coesão. O princípio fundamental de uma sociedade tradicional é, portanto, a dialética centro/periferia. Com a multiplicação das trocas mercantis e a revolução industrial, esse princípio não desaparece, mas ele é progressivamente suplantado por uma outra lógica, esta que opõe o global e o setorial: a territorialidade recua diante da setorialidade.
2. Do território ao setor. Dentre as inúmeras conseqüências das transformações pelas quais passou o Ocidente entre os séculos XVIII e XIX, a explosão da divisão social do trabalho é provavelmente a mais espetacular. Esse movimento marcou o nascimento das ciências sociais porque as primeiras sociologias, de Spencer a Durkheim, fizeram – um pouco abusivamente – a grande lei da evolução das sociedades humanas.
Pode-se esquematizá-la em três processos fundamentais:
s Uma “explosão” nas estruturas tradicionais e notadamente na família como lugar de atividade econômica. Doravante a célula familiar vai se limitar mais e mais à esfera da reprodução e não do trabalho, logo mais identificada àquela do lazer e do consumo. As atividades de produção, em contrapartida, vão se desenvolver dentro do universo profissional.
s Um movimento de corte (separação) das atividades econômicas sob a forma de papéis profissionais mais e mais numerosos, mais e mais especializados e cujo acesso vai depender mais e mais de uma formação específica.
s Enfim, a emergência de novos modelos de reagrupamento desses papéis profissionais, sob a forma de novas lógicas de reunião da divisão do trabalho, não mais fundadas sobre o território, que perde sua pertinência, mas por vias exclusivamente profissionais.
Assiste-se, então, a passagem de uma lógica horizontal (a dos territórios) a uma lógica vertical (a dos setores). Se pode dizer também que se passa de uma prevalência da dialética centro/periferia a uma dominação da lógica global/setorial. Dois exemplos ilustram essa transformação.
A primeira é aquela do mundo rural. Numa sociedade tradicional a agricultura não existe propriamente como uma atividade profissional: o camponês (quer dizer, aquele que é do campo) trabalha para a assegurar a reprodução de sua própria família. Existe pouquíssima distinção entre os papéis “profissionais” e o conjunto dos papéis familiares, de sociabilidade ou de vizinhança: não existe distinção entre trabalho e não-trabalho.
Com o processo de modernização (na França, esse processo se desenvolveu tardiamente, o que permitiu ver as coisas se desenrolarem em velocidade acelerada), o sistema de relações estoura completamente: a modernização dos métodos de trabalho conduz o camponês a romper com sua relação com o território; o exercício da agricultura se transforma em uma profissão que define suas próprias regras d´excellence; enfim, a esfera da produção se dissocia da esfera da reprodução. Em resumo, vê-se emergir, no seio do mundo rural, um conjunto de papéis profissionais cuja definição e articulação não depende mais da relação com um território, mas que tende a definir suas próprias regras de funcionamento: o setor agrícola se desata do mundo rural. É precisamente nesse momento que põe em prática uma política agrícola.
Segundo exemplo: o setor social. Aqui não se trata de uma noção que se possa dizer propriamente que possua um sentido numa sociedade territorial. Nesse tipo de sociedade, o problema dos pobres e dos indigentes se trata localmente por intermédio das campanhas de caridade ou de assistência. Ora, inúmeros trabalhos mostram que com a emergência do assalariado e do enfraquecimento das solidariedades locais se vê desenvolver uma nova forma de solidariedade ou de laço social: é o welfare state que tenta trazer uma resposta ao fim da ordem territorial oferecendo a cada grupo “não territorial” um lugar e um proteção mínima dentro da sociedade. É a passagem da assistência, que sobressaia da ordem territorial, à técnica da seguridade que remete à setorialidade: as previdências sociais, escreve Didier Renard, “marcam a transição de uma proteção social organizada sobre uma base territorial em direção a uma proteção social organizada sobre uma base profissional”[4]. A partir de então, o “social” vai se desenvolver como setor específico e fazer-se objeto de políticas adaptadas.
Em cada caso, o processo é similar: o setor aparece como uma estruturação vertical de papéis sociais (em geral profissionais) que definem suas regras de funcionamento, de seleção das elites, de elaboração de normas e de valores específicos, de fixação de suas fronteiras, etc. A tradução sociológica da noção de setor é, bem entendido,  a corporação: cada setor constrói uma identidade corporativista própria que dará a unidade e o sentido ao que no início não passava de uma agregação abstrata de papéis profissionais. De certa forma, cada setor vai lidar com o território se colocando com “princípio” da estruturação das relações sociais. O problema é que falta aos setores um atributo essencial dos territórios: eles não são auto-reprodutíveis. Mais exatamente, seu grau de auto-reprodução enquanto sistema social abstrato é muito mais frágil porque eles dependem da reprodução de outros setores[5].
Conseqüência: toda sociedade setorial será necessariamente confrontada como um grave problema de coesão social. Enquanto a sociedade tradicional é ameaçada de explosão, a sociedade setorial está ameaçada de desintegração, se ela não encontra nela mesma os meios de gerir os antagonismos intersetoriais. Esses meios são as políticas públicas. Por que esse risco de desintegração? Porque cada setor, desenvolvendo sua própria lógica de reprodução erigirá seus objetivos setoriais (aumentar o lucro dos agricultores, desenvolver o quadro de atendimento médico à população, melhorar o equipamento do exército...) como fins últimos. Ademais que, contrariamente ao território, um setor não pode fazer secessão! Não se pode imaginar o setor de saúde ou o de agricultura se separando da sociedade: produtos da divisão do trabalho, os diferentes conjuntos setoriais são, ao mesmo tempo, dependentes uns dos outros e antagonistas na “luta” pela obtenção de recursos socioeconômicos raros. A passagem de uma lógica territorial para uma lógica setorial acarreta, então, duas conseqüências maiores.
A)   Uma transformação dos processos de mediação social - ao lado das mediações territoriais que subsistem vendo sua importância diminuir, se multiplicam as mediações de tipo setorial. Essas últimas projetam à frente da cena social uma nova geração de representantes cuja legitimidade não está mais fundada sobre a aptidão de representar uma comunidade territorial mas sobre a representação de um agrupamento profissional.
B)   Utilização cada vez mais massiva de novas ferramentas intelectuais para pensar a regulação das diferentes demandas setoriais. Trata-se do ajustamento da contabilidade nacional e dos quadros de trocas intersetoriais. Mais geralmente, todo o sistema de planificação francesa que se desenvolve após a guerra é uma representação cênica (mise en scêne) do confronto dos diferentes setores (parceiros sociais, ministérios): o Plano, na França, é um grande teatro da setorialidade onde se vê, ao mesmo tempo, “parceiros sociais” exprimirem suas reivindicações setoriais e os tecnocratas afiarem seus instrumentos de regulação macroeconômica de uma sociedade de agora em diante setorializada.
3. O crescimento da historicidade. Essa passagem da territorialidade à setorialidade se acompanha da emergência de uma nova visão de mundo valorizando a ação das sociedades sobre elas mesmas. Doravante, as sociedades industriais dispõem, graças ao saber científico e ao seu aparelho industrial, de uma capacidade de modificar seu meio ambiente, sem ligação qualquer com o passado. Mas o corolário dessa evolução é o que Yves Barel chama de “auto-referência social”[6]: de agora em diante, as sociedades industriais devem encontrar em seu seio o referencial que dará sentido a sua ação.
Esse novo referencial corresponde ao conceito de historicidade proposto por Alain Tourraine a fim de pensar sobre esse crescimento da capacidade de ação das sociedades modernas sobre elas mesmas. As sociedades tradicionais, ao contrário, se caracterizam por sua frágil historicidade, o que significa que elas são fortemente dependentes de elementos exteriores a elas mesmas na orientação de sua reprodução: climas, fenômenos naturais. Do ponto de vista que nos interessa aqui, esse desenvolvimento das sociedades industriais em controlar seu ambiente natural e social tem uma conseqüência essencial: ela vem reforçar ainda a necessidade de colocar em prática procedimentos de regulação política. Com efeito, esse crescimento da margem de ação sobre o mundo não se pode exercer “automaticamente”. Pressupõe que sejam colocados em prática procedimentos de escolha arbitrados entre as diferentes opções possíveis. Na realidade, cada avanço no domínio da reprodução social vai gerar toda uma série de efeitos mais ou menos inesperados que devem ser levados em conta.
A intensificação da setorialidade e o crescimento da historicidade são portanto dois aspectos de uma mesma transformação fundamental, aquela que leva as sociedades modernas a modificar sua relação com o mundo através de uma crescente carga de sua própria reprodução. Hoje, essa evolução é bem lida em três domínios:
à a manipulação genética, pois as sociedades humanas estão a um passo de poder mudar o fundamento mesmo de sua existência, o código genético do homem;
à o meio ambiente, porque pela primeira vez na história as sociedades humanas têm a capacidade de modificar radicalmente e de maneira irreversível seu ecossistema.
à As armas atômicas, porque pela primeira vez na história as sociedades humanas têm o poder de decidir se destruírem mutuamente.
É o paradoxo da incerteza: enquanto as sociedades tradicionais, cuja margem de ação sobre o mundo é frágil, são mais dependentes dos eventos que lhes são exteriores, as sociedades modernas que controlam infinitamente melhor sua ação sobre o real vêm sua dependência crescer em relação aos seus próprios instrumentos. A incerteza máxima não é geralmente produzida, hoje em dia, pelos eventos exteriores, mas pelo “colocar em ação” dos meios destinados a controlar o meio ambiente: ataques repentinos de fragilidade do dólar, catástrofes aéreas ou rodoviárias. Isso significa que inúmeras políticas públicas não terão outro objetivo senão que a gestão dos desajustamentos produzidos por outras políticas setoriais: a sociedade setorial, em perpétuo desequilíbrio, gera permanentemente “problemas”, “disfunções” ou “perversos efeitos” que deverão, cada um a sua vez, ser objeto de políticas públicas.
Tal é o quadro geral no qual se desenvolve nosso estudo de políticas públicas. Será possível, de agora em diante, passar às definições mais precisas.
II – As políticas públicas como mediações
Veremos primeiramente o que diz a literatura consagrada à análise das políticas públicas antes de reenquadrar essa definição na perspectiva aqui escolhida.
1. O que é uma política pública? – Charles O. Jones insiste sobre a polissemia do termo que é utilizado em contextos muito diferentes: a “política americana no Extremo-Oriente”, a política de circulação de uma grande cidade, a política de uma empresa, etc.[7]
Por essa razão, os autores propõem sempre uma definição mínima de uma política pública que permita penetrar no sujeito sem se fixar muito nos contornos para poder avançar. É o caso da definição que dão Yves Mény e Jean-Claude Thenig em sua obra conjunta que constitui uma boa síntese da abundante literatura anglo-saxônica: “uma política pública se apresenta sob a forma de um programa de ação governamental em um setor da sociedade ou em um espaço geográfico”[8]. Essa abordagem está de acordo com a atitude pragmática que é sempre a dos analistas de políticas. Aliás, numerosos autores identificam aproximadamente política pública e programa de ação governamental. A vantagem dessas definições é cercar um objeto de pesquisa relativamente concreto: a política agrícola, a política urbana ou a política de transportes como conjunto de programas governamentais nos domínios da agricultura, do urbanismo ou dos transportes.
Mas seu inconveniente é o de nada dizer sobre a gênese social das políticas públicas. Isso porque, conforme a perspectiva geral traçada acima, o esforço é o de compreender uma política pública como um processo de mediação social, na medida que o objeto de cada política pública é se encarregar dos desajustes que podem intervir entre um setor e outros setores, ou ainda entre um setor e a sociedade global. Dir-se-á que o objeto de uma política pública é a gestão de uma relação global/setorial, o que virá abreviado “RGS”.
2. A gestão da relação global-setorial - Cada setor se reproduz se transformando e modificando suas relações com os outros setores.
A RGS é, ao mesmo tempo, objeto das políticas públicas (o problema que se procura resolver colocando em prática as políticas) e a variável chave que determinará as condições de elaboração de uma política. Assim, é em função do lugar do setor automobilístico na sociedade francesa que será elaborada uma política destinada precisamente a modificar as relações que o setor automobilístico trava com os outros setores. Próprio de uma sociedade setorial é gerar permanentemente uma infinidade de defasagens e desajustes entre os setores, cujos modos de produção entram em colisão constantemente. Gera a obsessão de “mudança”, de “modernização” ou de “adaptação”, típica dessas sociedades. Com efeito, de um jeito ou de outro, o objeto das políticas consiste sempre em frear ou acelerar a transformação do setor do qual elas se encarregam. Esse feito provoca inevitavelmente outras defasagens que, é claro, necessitarão, por sua vez, de serem sanadas, e assim por diante.

3 - Um esquema da análise das políticas

Existe política pública logo que uma autoridade pública local ou nacional, tenta, por meio de um programa de ação coordenada, modificar o meio cultural, social ou econômico dos atores sociais percebidos em geral numa lógica setorial. A partir de então, toda política pode se decompor em três processos fundamentais.
a) trata-se em primeiro lugar de uma tentativa (o que significa, ao mesmo tempo, que existe ação voluntária e que esta nem sempre obtém resultado esperado) para administrar o lugar, o papel e a função dos setores concernidos em relação a sociedade global ou em relação a outros setores.
b) Esta relação global/setorial só pode se transformar em objeto de investigação pública em função da imagem que fazem os atores envolvidos. É esta representação da RGS que se chama referencial de uma política pública que designa o conjunto de imagens ou normas de referência, em função das quais são definidos os critérios de intervenção do Estado, assim como os objetivos da política pública considerada.
c) Nessas condições, uma etapa fundamental da pesquisa consistirá em determinar qual o setor (ou grupo de atores) que se encarrega desta operação de construção ou de transformação do referencial de uma política pública. Com efeito, esse ator que se chamará mediador ocupará uma posição estratégica no conjunto do sistema de decisão examinado. Pode se resumir esses três caracteres através do seguinte esquema:


A elaboração e implementação de políticas públicas faz-se através da íntima articulação entre Estado e grupos de interesse que exercem papel de mediação ao prepresentarem setores diversos da sociedade perante o Estado, fenômeno designado por Muller (1998) como neocorporativismo. O neocorporativismo define, então, um tipo de articulação entre grupos de interesse e políticas públicas, próprios a certos países industrializados [...]
Nesse contexto, evidencia-se um duplo processo no qual o Estado – e os processos de elaboração das políticas públicas – exerce um papel importante na gênese e na definição dos atores sociais[9], ao mesmo tempo em que esses atores buscam uma representação mais efetiva junto às intâncias administrativas com maior poder decisório.
Segundo Muller, o conceito de corporativismo coloca em evidência dois aspectos fundamentais que manifestam o crescente papel das políticas públicas na mediação social:
a)    O acesso aos lugares de elaboração das políticas públicas é um entrave estratégico para os diferentes grupos de interesse a fim de obter do Estado os recursos regulamentares, financeiros ou simbólicos. A partir de então, um grupo de interesse deve ser integrado o mais acima possível no processo de decisão conduzindo a definição de uma política pública, esforçando-se em dominar as condições de implementação da política.
b)    O melhor meio de alcançar esses objetivos é de obter do Estado, de fato ou de direito, um monopólio de representação junto às instâncias administrativas competentes ao benefício de uma das organizações envolvidas. A mediação corporativista marca então um tipo de arranjo mútuo [através] do qual o Estado irá estabilizar o ambiente social de uma política pública conferindo um eminente papel a um dos atores presentes (na necessidade, cria esse ator...) o que lhe permite dispor de um intermediário eficaz dentro do setor. Isso significa que, de mais a mais, o continuum que une os indivíduos à sociedade passa pelo exercício de uma política pública.

A primeira vista, pode parecer exagerada a idéia de que o Estado “cria” os atores com os quais dialoga no processo de elaboração de políticas públicas. Mas as estratégias adotadas em diversos setores, particularmente no campo do turismo, convergem para essa perspectiva...
A notória preocupação das políticas de turismo do Estado da Bahia em integrar os empresários do setor de forma a constituir um ambiente político mais propício para fazer fluir as decisões de investimento e melhorar o desempenho do setor evidencia-se na criação recente do cluster do entretenimento... entendido como "um grupamento de empresas líderes que comercializam produtos e/ou serviços competitivos em mercados estratégicos", por iniciativa do governo estadual.

Disposto a consolidar a Bahia como o destino mais visitado do país, o Governo desse Estado vem promovendo uma grande reestruturação no setor turístico. Para essa reestruturação, a parceria e a integração com a iniciativa privada são fundamentais. Sendo assim, o Governo do Estado definiu uma nova estratégia para o século XXI: a criação de um "Cluster de Entretenimento" [...]. Esse "Cluster" inclui os setores de turismo, cultura, lazer, esportes, música, gastronomia e outros que se relacionam à atividade turística.

O sucesso do projeto do Cluster de Entretenimento pressupõe algumas modificações no modelo atualmente vigente:
• lideranças empresariais comprometidas com o futuro;
• visão compartilhada do negócio entre os empresários;
• reposicionamento estratégico, implicando na melhoria do produto e na segmentação do mercado consumidor;
• geração de um ambiente de confiabilidade e previsibilidade entre o governo e o empresariado;
• integração entre o governo e o empresariado.
Nessa estratégia, cabe ao Governo o papel de facilitador, indutor e incentivador do desenvolvimento econômico e social, através de ações continuadas e progressivas, que visem:
• manter um ambiente estável e previsível;
• melhorar a disponibilidade, a qualidade e a eficiência dos insumos, da infra-estrutura e das instituições;
• definir regras e incentivar a competição;
• estimular e facilitar o desenvolvimento dos membros do Cluster.




[1] MULLER, P. As políticas públicas. 3ª ed. corrigida. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.
[2] E. Weber, Les fin des territoirs. Paris, Fayard, 1983.
[3] E. Durkheim. De la division du travail social. Paris, PUF, 1967.
[4] D. Renard, Une definition institutionelle du lien social. Revue françoise de science politique, vol. 38, n° 3, juin, 1988, p. 381.
[5] Y. Barel, La reproduction soliale. Paris, Anthropos, 1973.
[6] Cf. L. Nizard, Rapport introductif au colloque Planification et Société, Grenoble, PUG, 1974.. Cf. igualmente as duas obras publicadas pleo Institut d´histoire du temp présent: H Rousso (dir.) De Monnet à massé, Paris, CNRS, 1986, e La planification em crise, Paris, CNRS, 1987.
[7] Cf. Jones, An introduction to the study of public policy. Belmont, Duxbury Press, 1970.
[8] Y. Mény, J.-C. Thenig, Politiques publiques. Paris, PUF, 1989, p. 130.
[9] Cf. B. Jobert et P. Muller, L’Etat em action, op. cit., p. 45.

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